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NOME: Manuel Bravo Saramago NASCIMENTO: 19/10/1944, Tombos - MG FORMAÇÃO: Bacharel em Direito pela Faculdade Cândido Mendes - Rio de Janeiro/MG - 1971. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Belo Horizonte/MG - 2003.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O encontro

Final do mês de maio, noite fria, garoa teimosa debruçava sobre a relva do Independência, onde jogavam Uberaba x Atlético, 0x0, jogo horrível, com 950 (novecentos e cinquenta) pagantes! Os dois times já desclassificados para a disputa do campeonato.
Dois velhos amigos, um procurador-MP, já aposentado, atualmente advogado de sucesso, e um não menos velho magistrado, que passou pelo M.P, iniciando nova carreira na magistratura, atualmente no tribunal, se encontraram, não precisa falar que apaixonados atleticanos. Começaram a conversar, como iguais a qualquer velho, falavam do passado.
Perguntou o procurador: - Amigo qual o melhor jogador do Atlético na década de 50 (século XX)? Respondeu o magistrado: - é fácil de responder, claro que foi o Carlyle, extraordinário centroavante, vendido para o Fluminense, em 1951, onde foi campeão; no ano seguinte, disputou o "carioca" pelo Botafogo e, finalmente, se não me engano, passou pelo Palmeiras. Disputava posição com Ademir na seleção. Não jogou a copa/50 porque teria brigado com o técnico, Flávio Costa. Passou ainda por aqui "Veludo" goleiro reserva do Castilho, no Fluminense, que, segundo João Saldanha, foi melhor que o titular. Era, realmente, notável.
O procurador, impaciente com a péssima qualidade do jogo, voltou a perguntar: - qual o melhor jogador do Atlético que assistiu em todos os tempos? - Respondeu o magistrado: - também é fácil a resposta, indubitavelmente, foi Reinaldo. Extraordinário jogador!!! Se não ficasse aleijado jovem ainda seria o que mais se aproximaria do Pelé. Enquanto o magistrado respondia ao amigo, lá no gramado, o centro avante do Atlético perdia um gol, sob a trave: bola batendo na sua canela foi para fora. Coisa horrível!!!
O magistrado foi mais além: - passaram pelo Atlético grandes jogadores, davam show, nas décadas 70/80 - Marcelo Oliveira, Oldair, Éder, Wanderley, Cerezo, P. Isidoro, Luizinho, Wantuir Galdino e outros, com o que concordou o amigo.Fim de jogo, levantaram-se. O procurador fez um convite ao parceiro: - vamos jantar, na velha cantina, esquina da rua da Bahia com av. Augusto de Lima, dar um mergulho num passado de cerca de 50 (cinquenta) anos. Convite aceito. Embarcaram num taxi e seguiram para o local combinado.
Passearam pela galeria já marcada pela idade, do lado direito de quem entra, a mesma livraria, ao fundo, algumas barbearias, bares, todos conhecidos, e, à esquerda, a cantina.
Os dois amigos adentraram-na. Montagem antiga, as mesmas mesas e cadeiras, tudo limpo, ainda, com alguns fregueses, todos com mais de meio século de existência, ao fundo, o piano negro, já bem acariciado pelo tempo. Eis a surpresa maior, o mesmo pianista e também exímio saxofonista, Jaiminho, quase octogenário.
Os amigos ocuparam a mesa, ao fundo, à direita de quem entra, e pediram a mesma cerveja de antanho. Ambos não são amantes do vinho.
Começaram a conversa, quase que imperceptível pelos circunstantes, o procurador narrava o perfil dos magistrados do tribunal do seu tempo em que lá servia como Procurador Geral. O magistrado atento, dizia: -nada mudou, tudo a mesma coisa.
Entrementes, surge na porta da cantina uma mulher morena, septuagenária, cabelos grisalhos, olhos azuis de muita expressão, lindíssima! Reconhecida de imediato pelos amigos - era a Neide Alencar, conhecida para o "mundo" como Cyssa (não se sabe o porquê do apelido), ex-cantora da noite, antes, porém, passou pelo prostíbulo da rua Uberaba, entre Timbiras e Guajajaras, final dos anos/50 (cinquenta) e até a metade da década/60 (sessenta), casou-se com o Chagas Albuquerque, médico, professor, titular da cadeira de obstetrícia e ginecologia da UFV, com mestrado nos Estados Unidos e doutorado na Alemanha, fez escola em B.Horizonte, com quem teve 5 (cinco) filhos, falecido há cerca de 2 (dois) anos.
Cyssa dissera para os velhos, procurador e magistrado, que pediu ao Jaiminho que lhe telefonasse quando ali chegasse algum amigo do Chaguinha, para que viesse curtir o passado. A solidão era insuportável. Não se acostumou com reuniões sociais em ambiente muito sofisticado, sem a presença do marido. A prostituição deixou-lhe marcas indeléveis.
A conversa evoluiu e o que tinham de comum era a história da mocidade dos três, aí compreendido o grande amor de Cyssa com Chaguinha, exuberante, aparentemente com boa saúde, narra seu primeiro encontro com aquele que viria a ser seu grande e único amor.
- Estava no salão do bordel da rua Uberaba, quando ali surge um jovem moreno, fantasiado de médico, vinha do Felício Rocho, onde era residente, assentou próximo da porta, defronte à orquestra, o ambiente estava em penumbra, pediu uma cerveja e eu me aproximei. Entabulamos um assunto, após elogiar excessivamente os meus olhos azuis, o que pouco tinha a ver com o ambiente. Aquele garoto, imberbe ainda, uma formação de homem, não era, deveras, um bom freguês, mas, a conversa ia em direção a que já se antevia um grande amor. Naquela noite, já não quis deitar com ninguém, razão pela qual a cafetina me interpelou. Ele não me convidou para o quarto, do que mais gostei. Saímos do bordel juntos e eu paguei a multa. Ele me levou em casa, próximo a Venda Nova, num carro velho, "Chevrolet/1946". Na despedida, acariciou-me os cabelos e beijou-me sobre os olhos fechados, desprovido de qualquer erotismo, que é, sem dúvida, o beijo da alma, o que mais a puta quer quando sai do bordel.
Cyssa continuava no relato e os amigos atentos, tudo parecia que lhes fazia feliz e era novidade, embora se passasse há cerca de 45 (quarenta e cinco) anos e eles certamente sabiam de tudo em razão da turma de amigos a que pertenciam.
O porquê do apego ao Chaguinha de imediato - Ah, Puta quando percebe que há a possibilidade de um amor, ainda que possa ser fugidia, ela agarra aquela chance com unhas e dentes porque ela sabe o que é, realmente, o desamor, o sexo por sexo, em cada relação sexual profissional um estupro permitido, a falta de afeto, a do beijo de despedida com o "até já", o elogio sincero do amado, razão pela qual Cyssa investiu, e muito, no relacionamento.
Continua Cyssa: - No dia seguinte, já não voltei ao bordel. Mas o que fazer, pois precisava de dinheiro para sustentar minha mãe e um irmão pequeno. Tudo muito difícil. Fui trabalhar num bar no Barro Preto, durante a noite. E passei a encontrar com Chaguinha, quase que diariamente, pois ali passava para lanchar, após seu expediente no hospital. Demoramos ir para a cama. Isto aumentava o meu amor por ele. Percebia que não queria somente sexo. Até que um dia ele me convidou para dormir no seu apartamento - uma república, na av. A. de Lima. Que noite! Que amor! Que alucinação! Algo indescritível!! Saí dali apaixonada, mais do que já estava, é verdade, sentindo um amor daqueles que não se sabe descrever. Os encontros continuaram. Eu me ofereci para, de tempos em tempos, limpar o apartamento, lavar os jalecos e bordar no seu bolso as suas iniciais. Coisa de mulher muito apaixonada!!!
Passaram os tempos, Chaguinha foi para os Estados Unidos e, após, para Alemanha. Eu esperei pelo seu retorno sem deitar com quem quer que seja, o que não foi sacrifício algum. Sacrificante foi a distância, a saudade.
Nos tempos em que Chaguinha esteve fora, com enorme saudade, Cyssa fez teste numa gravadora, não deu certo. Quando se prostituía, cantava, de quando em vez, na orquestra da casa. Foi convidada para ser crooner na orquestra do Jaiminho, no início, ainda, em bordéis, depois em clubes, festas de formatura, réveillon e nos finais de semana dançantes nas faculdades, o que realmente sustentava os músicos, pois era receita certa.
O velho magistrado, muito curioso, perguntou a Cyssa: - quais as músicas mais pedidas, nos finais de baile, quando todos já tinham arranjado par certo e o álcool já fazia efeito.
- Cyssa: - Era o pout-pourri do amor “De Cigarro em Cigarro", "Negue", "Ninguém me Ama" um fox francês "Petite Fleur", solado no sax maravilhosamente pelo Booker Pitman, em seu conjunto, e pelo Jaiminho no nosso, e "Nossos Momentos".
O velho Procurador fez referência ao retorno de Chaguinha da Alemanha, quando logo fez concurso e foi aprovado para a cátedra de Ginecologia e Obstetrícia da Federal.
Comenta Cyssa - que, certa vez, esteve por terminar o relacionamento porque Chaguinha estava com ciúme, inteiramente infundado, do baterista da orquestra, Joel, que, nas horas vagas, jogava no time aspirante do Atlético. Quando Chaguinha chegou ao salão, se não me engano no clube da P.Militar, pedi ao Jaiminho que tocasse pout-pourri do amor, como dizíamos, ou seja,  somente "De Cigarro em Cigarro"  "Ninguém me Ama" e "Negue".
Antes do jantar, Cyssa pediu o tom ao Jaiminho para cantar de "Cigarro em Cigarro" (samba canção de Luiz Bonfá, de 1953, gravado pela Nora Ney) e aí cantou o seguinte verso:

"Vivo só sem você
Que não posso esquecer
Um momento sequer
Vivo pobre de amor
À espera de alguém
E esse alguém não me quer
Vejo o tempo passar
O inverno chegar
Só não vejo você
Se outro amor em meu quarto bater
Eu não vou atender
Outra noite sem fim
Aumentou meu sofrer
De cigarro em cigarro
Olhando a fumaça no ar se perder
Vivo só sem você.............."

            A segunda foi "Ninguém me Ama" (Samba Canção, autoria de Antônio Maria,1952), cantou a música toda, era curta:
“Ninguém me ama, ninguém me quer
Ninguém me chama de meu amor
A vida passa, e eu sem ninguém
E quem me abraça não me quer bem
Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso
E hoje descrente de tudo me resta o cansaço
Cansaço da vida, cansaço de mim
Velhice chegando e eu chegando ao fim."

E a terceira foi "Negue" (Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos-1960)

“Negue seu amor, o seu carinho
Diga que você já me esqueceu
Pise, machucando com jeitinho
Este coração que ainda é seu
Diga que meu pranto é covardia
Mas não se esqueça
Que você foi meu um dia
Diga que já não me quer
Negue que me pertenceu
Que eu mostro a boca molhada
Ainda marcada pelo beijo seu.”

            Relata Cyssa:

            - As pazes foram feitas evidentemente, dormimos juntos, e muito juntos, como amamos!!! Entre nós, havia uma alquimia, insuperável - cumplicidade, juventude e muito amor, não precisava de mais nada.
Depois da serenata, lindíssima, Cyssa chorou quando se referiu ao ato do casamento: 
- Foi um ato cercado por uma simplicidade franciscana. Em casamento de puta, normalmente, não há família para comparecer: no nosso, em particular, todos os meus familiares já eram falecidos e os dele não quiseram estar presentes. A cerimônia foi singela, testemunhada por músicos da orquestra e médicos colegas do Chaguinha. Não houve festa. Não havia dinheiro para tal.
Ao falar da lua de mel, Cyssa se transformou:
- A lua de mel, ah, a lua de mel........, para esta sobrou alguns trocados. Foi, deveras, algo inesquecível, numa praia capixaba, deserta, em que tudo entre nós dois aconteceu, até uma marijuana (nunca mais usamos) foi consumida para cercar a ocasião com alucinação porque a emoção já estava presente entre nós, há muito tempo. Que saudade!!! Que amor, com tudo o que se tem direito!!! Eram, realmente, dois corpos num só, literalmente, uma simbiose. Observou o velho magistrado: - Nunca mais usou, que mentira em Cyssa!
Comentando sobre a família constituída: - tivemos filhos; foi tudo muito bonito!!!! A morte de Chaguinha não poderia acontecer. Mas........
Após o jantar - o velho filé a moda da casa, igual ao dos velhos tempos que matava fome de estudante - cinco horas da manhã, cantina já com as portas abaixadas, todos se levantaram e se despediram, inclusive o músico e o garçom. Marcaram novo encontro para que os velhos amigos falassem sobre a Clarisse do quarto 25 e Iracema do 27, conhecidas dos três. O que poderia ser. Quem era de quem? Como tudo acabou?
Esta é uma história de ficção.

Um comentário:

J. Borges disse...

Interessantes essas histórias do Saramago, esse "blogueiro" incansável e atleticano convicto "na alegria e na tristeza", na primeira ou na segunda divisão(como os autênticos alvi-negros). No ENCONTRO, a mistura do futebol, dos amores notívagos e da música, a mostrar que esses temas tocam a todos, até mesmo a dois eminentes e respeitáveis juristas. MISTER BAY